24 de janeiro de 2005
Como são admiráveis as pessoas que nós não conhecemos bem-- Millôr Fernandes
Um homem sério tem poucas idéias. Um homem de idéias nunca é sério-- Paul Valéry
A vantagem de ter péssima memória é divertir-se muitas vezes com as mesmas coisas boas como se fosse a primeira vez-- Friedrich Nietzsche
Até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso. Nunca se sabe qual é o defeito que sustenta nosso edifício inteiro-- Clarice Lispector
Existem apenas duas tragédias no mundo. Uma é não conseguir o que se quer; a outra é conseguir-- Oscar Wilde
Não há satisfação maior do que aquela que sentimos quando proporcionamos alegria aos outros-- M. Taniguchi
Venham até a borda, ele disse. Eles disseram: Nós temos medo. Venham até a borda, ele insistiu. Eles foram. Ele os empurrou... E eles voaram.-- Guillaume Apollinaire
Renda-se, como eu me rendi. Mergulhe no que você não conhece como eu mergulhei. Não se preocupe em entender, viver ultrapassa qualquer entendimento...-- Clarice Lispector
Estamos todos na sarjeta, mas alguns de nós estão olhando as estrelas.
Oscar Wilde
José Paulo Paes
Convite
Poesia é brincar com palavras como se brinca com bola, papagaio, pião.
Só que bola, papagaio, pião de tanto brincar se gastam.
As palavras não: quanto mais se brinca com elas mais novas ficam.
Como a água do rio que é água sempre nova.
Como cada dia que é sempre um novo dia.
Vamos brincar de
poesia?
DATILOGRAFANDO ESTE TEXTO
ler se lê nos dedos
não nos olhos
que os olhos são mais dados
a segredos
PAULO LEMINSKI
Retrato de corpo inteiro Anna Maria Feitosa
No azul do teu peitoensolaradohá espelhos de cristalmultiplicando imagens.
Emergem risoslágrimaspromessasolhares infantisperdidamenteinfinitamenteapaixonadosadolescentes.
A vida renascedas tuas mãostremulasentrelaçadas— há muito tempo entrelaçadas —Reencontradas.
No espaço secretoda memória,nosso retrato- De corpo inteiro -É o quadro mais bonito que se pode iluminar.
Iluminado Anna Maria Feitosa
Ando em buscado ponto de equilíbrioentre o aquie o agora
Perco os limitesdo tempo sigo lenta.
Pensando como quem dormefalandocomo quem sonhaamandocomo quem pode.
Vejo a vidade olhos clarostranslúcidoscoloridoscomo vinhoiluminado.
Estrela perigosa Clarice Lispector
Estrela perigosaRosto ao ventoBarulho e silêncioleve porcelanatemplo submersotrigo e vinhotristeza de coisa vividaárvores já floresceramo sal trazido pelo ventoconhecimento por encantaçãoesqueleto de idéiasora pro nobisDecompor a luzmistério de estrelaspaixão pela exatidãocaça aos vagalumes.Vagalume é como orvalhoDiálogos que disfarçam conflitos por explodirEla pode ser venenosa como às vezes o cogumelo é.No obscuro erotismo de vida cheianodosas raízes.Missa negra, feiticeiros.Na proximidade de fontes,lagos e cachoeirasbraços e pernas e olhos,todos mortos se misturam e clamam por vida.Sinto a falta delecomo se me faltasse um dente na frente:excrucitante.Que medo alegre,o de te esperar.
Vimos chegar as andorinhas Rosa Lobato de Faria
Vimos chegar as andorinhasconjugarem-se as estrelasimpacientarem-se os ventos
Agoraesperemos o verão do teu nascimentotranqüilos, preguiçosos
Tão inseparáveis as nossas fomesTão emaranhadas as nossas veiasTão indestrutíveis os nossos sonhos
Espera-te um nomebreve como um beijoe o reino ilimitadodos meus braços
Viráscomo a luz maiorno solstício de junho.
Todas as vidas
Cora Coralina
Vive dentro de mim uma cabocla velha de mau-olhado, acocorada ao pé do borralho, olhando pra o fogo. Benze quebranto. Bota feitiço... Ogum. Orixá. Macumba, terreiro. Ogã, pai-de-santo...
Vive dentro de mim a lavadeira do Rio Vermelho, Seu cheiro gostoso d’água e sabão. Rodilha de pano. Trouxa de roupa, pedra de anil. Sua coroa verde de são-caetano.
Vive dentro de mim a mulher cozinheira. Pimenta e cebola. Quitute bem feito. Panela de barro. Taipa de lenha. Cozinha antiga toda pretinha. Bem cacheada de picumã. Pedra pontuda. Cumbuco de coco. Pisando alho-sal.
Vive dentro de mim a mulher do povo. Bem proletária. Bem linguaruda, desabusada, sem preconceitos, de casca-grossa, de chinelinha, e filharada.
Vive dentro de mim a mulher roceira. – Enxerto da terra, meio casmurra. Trabalhadeira. Madrugadeira. Analfabeta. De pé no chão. Bem parideira. Bem criadeira. Seus doze filhos. Seus vinte netos.
Vive dentro de mim a mulher da vida. Minha irmãzinha... tão desprezada, tão murmurada... Fingindo alegre seu triste fado.
Todas as vidas dentro de mim: Na minha vida – a vida mera das obscuras.
Dá-me a tua mão
Clarice Lispector
Dá-me a tua mão: Vou agora te contar como entrei no inexpressivo que sempre foi a minha busca cega e secreta. De como entrei naquilo que existe entre o número um e o número dois, de como vi a linha de mistério e fogo, e que é linha sub-reptícia.
Entre duas notas de música existe uma nota, entre dois fatos existe um fato, entre dois grãos de areia por mais juntos que estejam existe um intervalo de espaço, existe um sentir que é entre o sentir - nos interstícios da matéria primordial está a linha de mistério e fogo que é a respiração do mundo, e a respiração contínua do mundo é aquilo que ouvimos e chamamos de silêncio.
A lucidez perigosa
Clarice Lispector
Estou sentindo uma clareza tão grande que me anula como pessoa atual e comum: é uma lucidez vazia, como explicar? Assim como um cálculo matemático perfeito do qual, no entanto, não se precise.
Estou por assim dizer vendo claramente o vazio. E nem entendo aquilo que entendo: pois estou infinitamente maior que eu mesma, e não me alcanço.
Além do que: que faço dessa lucidez? Sei também que esta minha lucidez pode-se tornar o inferno humano – já me aconteceu antes.
Pois sei que – em termos de nossa diária e permanente acomodação resignada à irrealidade – essa clareza de realidade é um risco.
Apagai, pois, minha flama, Deus, porque ela não me serve para viver os dias. Ajudai-me a de novo consistir dos modos possíveis. Eu consisto, eu consisto, amém.
Poema sobre a recusa
Maria Tereza Horta
Como é possível perder-te sem nunca te ter achado nem na polpa dos meus dedos se ter formado o afago sem termos sido a cidade nem termos rasgado pedras sem descobrirmos a cor nem o interior da erva.
Como é possível perder-te sem nunca te ter achado minha raiva de ternura meu ódio de conhecer-te minha alegria profunda
Que este amor não me cegue nem me siga
Hilda Hilst
Que este amor não me cegue nem me siga. E de mim mesma nunca se aperceba. Que me exclua de estar sendo perseguida E do tormento De só por ele me saber estar sendo. Que o olhar não se perca nas tulipas Pois formas tão perfeitas de beleza Vêm do fulgor das trevas. E o meu Senhor habita o rutilante escuro De um suposto de heras em alto muro.
Que este amor só me faça descontente E farta de fadigas. E de fragilidades tantas Eu me faça pequena. E diminuta e tenra Como só soem ser aranhas e formigas.
Que este amor só me veja de partida.
Por que nome chamaremos
Cecília Meireles
Por que nome chamaremos quando nos sentirmos pálidos sobre os abismos supremos?
De que rosto, olhar, instante, veremos brilhar as âncoras para as mãos agonizantes?
Que salvação vai ser essa, com tão fortes asas súbitas, na definitiva pressa?
Ó grande urgência do aflito! Ecos de misericórdia procuram lágrima e grito,
– andam nas ruas do mundo, pondo sedas de silêncio em lábios de moribundo.
Brilhar pra sempre
Brilhar com um farol
Brilhar com brilho eterno
Gente é pra brilhar
Que tudo mais vá pro inferno
Este é meu slogan
E do sol
MAIAKAVOSKI
Nos demais,
todo mundo sabe,
o coração tem moradia certa,
fica bem aqui no meio do peito,
mas comigo a anatomia ficou louca,
sou todo coração.MAIAKAVOSKI
Das utopiasSe as coisas são inatingíveis... ora!Não é motivo para não querê-las...Que tristes os caminhos, se não foraA presença distante das estrelas!
Coincidência
Às vezes a gente pensa que está dizendo bobagem e está fazendo poesia.Os poemas
Os poemas são pássaros que chegamnão se sabe de onde e pousamno livro que lês.Quando fechas o livro, eles alçam vôocomo de um alçapão.Eles não têm pousonem portoalimentam-se um instante em cada par de mãose partem.E olhas, então, essas tuas mãos vazias,no maravilhado espanto de saberesque o alimento deles já estava em ti...Se eu Fosse um Padre
Se eu fosse um padre, eu, nos meus sermões,não falaria em Deus nem no Pecado- muito menos no Anjo Rebeladoe os encantos das suas seduções,não citaria santos e profetas:nada das suas celestiais promessasou das suas terríveis maldições...Se eu fosse um padre eu citaria os poetas,Rezaria seus versos, os mais belos,desses que desde a infância me embalarame quem me dera que alguns fossem meus!Porque a poesia purifica a alma... a um belo poema - ainda que de Deus se aparte -um belo poema sempre leva a Deus!
MARIO QUINTANA
vai vir o dia
quando tudo que eu diga
seja poesia
Leminski
Minha querida amiga:
Sim, é para você mesma que estou escrevendo – você que naquela noite disse que estava com vontade de pedir conselhos, mas tinha vergonha e achava que não valia a pena, e acabou me formulando uma pergunta ingênua: - Como é que a gente faz para esquecer uma pessoa? E logo depois me pediu que não pensasse nisso e esquecesse a pergunta, dizendo que achava que tinha bebido um ou dois uísques a mais...
Sei como você está sofrendo, e prefiro lhe responder assim pelas páginas de uma revista – fazendo de conta que me dirijo a um destinatário suposto. Destinatário, destinatária... Bonita palavra: não devia querer dizer apenas aquele ou aquela a quem se destina uma carta, devia querer dizer também a pessoa que é dona do destino da gente. Joana é minha destinatária.
Meu destino está em suas mãos; a ela se destinam meus pensamentos, minhas lembranças, o que sinto e o que sou; todo esse complexo mais ou menos melancólico e todavia tão veemente de coisas que eu nasci e me tornei.
Se me derem para encher uma fórmula impressa ou uma ficha de hotel eu poderei escrever assim: Procedência – Cachoeiro de Itapemirim; Destino – Joana. Pois é somente para ela que eu marcho. No táxi, no bonde, no avião, na rua, não interessa a direção em que me movo, meu destino é Joana. Que importa saber que jamais chegarei ao meu destino?(...)
Rubem Braga
VALSA DA PROCURA
Pousarei em ti como a noite
Suavemente sobre os oceanos
Venho, gaivota exausta,
desde o mais antigo
dos crepúsculos
sem jamais repousar.
Chegar a ti é quanto vale
para mim existir.
Eu, pássaro construído
de poesia, memória e vôo,
Saúdo os ares seus serenos
transeuntes
e o eterno milagre de voar.
Estendo asas à distância
e aos abismos e ao pavor.
Atravesso o tempo
como a silhueta de um deus
Para cantar ao seu coração
as luminosas cantigas do amor.
Pousarei em ti como o silêncio
eternamente sobre as sepulturas
? linguagem da ferrugem na face
dos engenhos abandonados.
Levarei à sua meiga presença
os bogaris da espera
a bruma densa das noites
eternas, onde a poesia habita
E a madrepérola
do meu último encantamento.
Eu, pássaro construído de poesia
memória e vôo,
chegarei ao teu ser
como um cavalo
atravessa a ponte.
NAIRSON SAQUAREMA
O nascimento do prazer (trecho)O prazer nascendo dói tanto no peito que se prefere sentir a habituada dor ao insólito prazer. A alegria verdadeira não tem explicação possível, não tem a possibilidade de ser compreendida - e se parece com o início de uma perdição irrecuperável. Esse fundir-se total é insuportavelmente bom - como se a morte fosse o nosso bem maior e final, só que não é a morte, é a vida incomensurável que chega a se parecer com a grandeza da morte. Deve-se deixar inundar pela alegria aos poucos - pois é a vida nascendo. E quem não tiver força, que antes cubra cada nervo com uma película protetora, com uma película de morte para poder tolerar a vida. Essa película pode consistir em qualquer ato formal protetor, em qualquer silêncio ou em várias palavras sem sentido. Pois o prazer não é de se brincar com ele. Ele é nós.CLARICE LISPECTOR.
COM LICENÇA POÉTICA
Quando nasci um anjo esbelto,
desses que trocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
Não sou tão feia que não possa casar,
acho o Rio de janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas, o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos(dor não é amargura).
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vais ser coxo na vida, é maldição pra homem.
Mulher é dobrável. Eu sou.
(Adélia Prado)
José
E agora, José?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?
e agora, Você?
Você que é sem nome,
que zomba dos outros,
Você que faz versos,
que ama, protesta?
e agora, José?
Está sem mulher,
está sem discurso,
está sem carinho,
já não pode beber,
já não pode fumar,
cuspir já não pode,
a noite esfriou,
o dia não veio,
o bonde não veio,
o riso não veio,
não veio a utopia
e tudo acabou
e tudo fugiu
e tudo mofou,
e agora, José?
E agora, José?
sua doce palavra,
seu instante de febre,
sua gula e jejum,
sua biblioteca,
sua lavra de ouro,
seu terno de vidro,
sua incoerência,
seu ódio,
e agora?
Com a chave na mão
quer abrir a porta,
não existe porta;
quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para Minas,
Minas não há mais.
José, e agora?
Se você gritasse,
se você gemesse,
se você tocasse,
a valsa vienense,
se você dormisse,
se você cansasse,
se você morresse...
Mas você não morre,
você é duro,
José!
Sozinho no escuro
qual bicho-do-mato,
sem teogonia,
sem parede nua
para se encostar,
sem cavalo preto
que fuja do galope,
você marcha, José!
José, para onde?
Carlos Drummond de Andrade
OS ENIGMAS
Tu Perguntas o que a lagosta tece lá embaixo
Com seus pés dourados.
Respondo que o oceano sabe.
E por quem a medusa espera
Em sua veste transparente?
Está esperando pelo tempo, como tu.
‘ Quem as algas apertam em seu abraço – perguntas –
mais firmes que uma hora e mar certos?’
Eu sei.
Perguntas sobre a presa branca do narval
E eu respondo como o unicórnio do mar, arpoado, morre.
Perguntas sobre as plumas do rei-pescador
Que vibram nas puras primaveras
Dos mares do sul.
Quero te contar que o oceano sabe isto :
Que a vida, em seus estojos de jóias, é infinita como a areia,
Incontável, pura,
E o tempo, entre as uvas cor de sangue,
Tornou a pedra dura e lisa,
Encheu a água–viva de luz,
Desfez o seu nó, soltou os seus fios musicais,
De uma cornucópia feita de infinita madrepérola.
Sou só a rede vazia
Diante dos olhos humanos
Na escuridão,
E de dedos habituados à longitude
Do tímido globo de uma laranja;
Caminho, como tu,
Investigando a estrela sem fim;
E em minha rede, durante a noite,
Acordo nu.
A única coisa capturada
É um peixe
Preso dentro do vento.
PABLO NERUDA
Adélia Prado
ANÍMICONasceu no meu jardim um pé de matoque dá flor amarela.Toda manhã vou lá pra escutar a zoeirada insetaria na festa.Tem zoada de todo jeito:tem do grosso, do fino, de aprendiz e demestre.É pata, é asas, é boca, é bico, é grão depoeira e pólen na fogueira do sol.Parece que a arvorinha conversa.
CORRIDINHO
O amor quer abraçar e não pode.A multidão em volta,Com seus olhos cediços,Põe caco de vidro no muroPara o amor desistir.O amor usa o correio,O correio trapaceia,A carta não chega,O amor fica sem saber se é ou não é.O amor pega o cavalo,Desembarca do trem,Chega na porta cansadoDe tanto caminhar a pé.Fala a palavra açucena,Pede água, bebe café,Dorme na sua presença,Chupa bala de hortelã.Tudo manha, truque, engenho:É descuidar, o amor te pega,Te come, te molha todo.Mas água o amor não é.
PAULO LEMINSKI
vão é tudo
que não for prazer
repartido prazer
entre parceiros
vãs
todas as coisas que vão
°
enchantagem
de tanto não fazer nada
acabo de ser culpado de tudo
esperanças, cheguei
tarde demais como uma lágrima
de tanto fazer tudo
parecer perfeito
você pode ficar louco
ou para todos os efeitos
suspeito
de ser verbo sem sujeito
pense um pouco
beba bastante
depois me conte direito
que aconteça o contrário
custe o que custar
deseja
quem quer que seja
tem calendário de tristezas
celebrar
tanto evitar o inevitável
in vino veritas
me parece
verdade
o pau na vida
o vinagre
vinho suave
pense e te pareça
senão eu te invento por toda a eternidade
°
tão
alta
a
torre
até
seu
tombo
virou
lenda
°
deus
algum
indu
ogum
vishnu
precisa
da tua prece
tua pressa
pessoa
só teu pulso
acelera
você padece
padecer
te resta
tudo
um belo dia
desaparece
°
Eu não sou eu nem sou o outro,
Sou qualquer coisa de intermédio:
Pilar da ponte de tédio
Que vai de mim para o Outro.
Mário de Sá Carneiro, Indícios de Oiro (1916)
Estatutos do Homem (Thiago de Mello)
Artigo 1
Fica decretado que agora vale a verdade, Que agora vale a vida, E que de mãos dadas, Trabalharemos todos pela vida verdadeira.
Artigo 2
Fica decretado que todos os dias da semana, Inclusive as Terças-feiras mais cinzentas, Têm direito a converter-se em manhãs de Domingo.
Artigo 3
Fica decretado que, a partir deste instante, Haverá girassóis em todas as janelas, Que os girassóis terão direito A abrir-se dentro da sombra; E que as janelas devem permanecer, o dia inteiro, Abertas para o verde onde cresça a esperança.
Artigo 4
Fica decretado que o homem Não precisará nunca mais Duvidar do homem. Que o homem confiará no homem Como a palmeira confia no vento, Como vento confia no ar, Como o ar confia no campo azul do céu.
Parágrafo
O homem confiará no homem Como um menino confia em outro menino.
Artigo 5
Fica decretado que os homens estão livres do jugo da menina. Nunca mais será preciso usar A couraça do silêncio Nem a armadura das palavras. O homem se sentará à mesa Com seu olhar limpo Porque a verdade passará a ser servida Antes da sobremesa.
Artigo 6
Fica estabelecida, durante dez séculos, A prática sonhada pelo profeta Isaías, E o lobo e o cordeiro pastarão juntos E a comida de ambos terá o mesmo gosto da aurora.
Artigo 7
Por decreto irrevogável fica estabelecido O reinado permanente da justiça e da caridade, E a alegria será uma bandeira generosa Para sempre desfraldada na alma do povo.
Artigo 8
Fica decretado que a maior dor Sempre foi e será sempre Não poder dar-se amor a quem se ama E saber que é a água Que dá à planta o milagre da flor.
Artigo 9
Fica permitido que o pão de cada dia Tenha no homem o sinal de seu amor, Mas que sobretudo tenha sempre O quente sabor da ternura.
Artigo 10
Fica permitido a qualquer pessoa, A qualquer hora da vida O uso de traje branco.
Artigo 11
Fica decretado por definição, que o homem é um animal que ama E que por isso é belo, Muito mais belo que a estrela da manhã.
Artigo 12
Decreta-se que nada será obrigado nem proibido. Tudo será permitido, Inclusive brincar com os rinocerontes E caminhar pelas tardes Com uma imensa begônia na lapela.
Parágrafo
Só uma coisa proibida: Amar sem amor
Artigo 13
Fica decretado que o dinheiro Não poderá nunca mais comprar O sol das manhãs vindouras. Expulso do grande baú do medo, O dinheiro se transformará em uma espada fraternal Para defender o direito de cantar E a festa do dia que chegou.
Artigo Final
Fica proibido o uso da palavra liberdade A qual será suprimida dos dicionários E do pântano enganoso das bocas. A partir deste instante A liberdade será algo vivo e transparente Como um fogo ou um rio, Ou coimo a semente do trigo E a sua morada será sempre O coração do homem.
Porquinho-da-Índia (Manuel Bandeira)
Quando eu tinha seis anos Ganhei um porquinho-da-índia. Que dor de coração me dava Porque o bichinho só queria estar debaixo do fogão! Levava ela prá sala Pra os lugares mais bonitos mais limpinhos Ela não gostava: Queria era estar debaixo do fogão. Não fazia caso nenhum das minhas ternurinhas ...
O meu porquinho-da-índia foi minha primeira namorada.
Vem sentar-te comigo Lídia, à beira do rio.Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamosQue a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas.
(Enlacemos as mãos.)
Depois pensemos, crianças adultas, que a vidaPassa e não fica, nada deixa e nunca regressa,Vai para um mar muito longe, para ao pé do Fado,
Mais longe que os deuses.
Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos.Quer gozemos, quer nao gozemos, passamos como o rio.Mais vale saber passar silenciosamente
E sem desassosegos grandes.
Sem amores, nem ódios, nem paixões que levantam a voz,Nem invejas que dão movimento demais aos olhos,Nem cuidados, porque se os tivesse o rio sempre correria,
E sempre iria ter ao mar.
Amemo-nos tranquilamente, pensando que podiamos,Se quiséssemos, trocar beijos e abraços e carícias,Mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do outro
Ouvindo correr o rio e vendo-o.
Colhamos flores, pega tu nelas e deixa-asNo colo, e que o seu perfume suavize o momento -Este momento em que sossegadamente nao cremos em nada,
Pagãos inocentes da decadência.
Ao menos, se for sombra antes, lembrar-te-as de mim depoisSem que a minha lembrança te arda ou te fira ou te mova,Porque nunca enlaçamos as mãos, nem nos beijamos
Nem fomos mais do que crianças.
E se antes do que eu levares o óbolo ao barqueiro sombrio,Eu nada terei que sofrer ao lembrar-me de ti.Ser-me-ás suave à memória lembrando-te assim - à beira-rio,
Pagã triste e com flores no regaço.
Ricardo Reis, 12-6-1914
Os olhos do poeta
O poeta tem olhos de água para reflectirem todas as cores do mundo,
e as formas e as proporções exactas, mesmo das coisas que os sábios desconhecem.
Em seu olhar estão as distâncias sem mistério que há entre as estrelas,
e estão as estrelas luzindo na penumbra dos bairros da miséria,
com as silhuetas escuras dos meninos vadios esguedelhados ao vento.
Em seu olhar estão as neves eternas dos Himalaias vencidos
e as rugas maceradas das mães que perderam os filhos na luta entre as pátrias
e o movimento ululante das cidades marítimas onde se falam todas as línguas da terra
e o gesto desolado dos homens que voltam ao lar com as mãos vazias e calejadas
e a luz do deserto incandescente e trémula, e os gestos dos pólos, brancos, brancos,
e a sombra das pálpebras sobre o rosto das noivas que não noivaram
e os tesouros dos oceanos desvendados maravilhando com contos-de-fada à hora da infância
e os trapos negros das mulheres dos pescadores esvoaçando como bandeiras aflitas
e correndo pela costa de mãos jogadas pró mar amaldiçoando a tempestade:
- todas as cores, todas as formas do mundo se agitam e gritam nos olhos do poeta.
Do seu olhar, que é um farol erguido no alto de um promontório,
sai uma estrela voando nas trevas
tocando de esperança o coração dos homens de todas as latitudes.
E os dias claros, inundados de vida, perdem o brilho nos olhos do poeta
que escreve poemas de revolta com tinta de sol na noite de angústia que pesa no mundo.
Manuel da Fonseca, Poemas completos
O Nosso
Amamos o que não conhecemos, o já perdido. O bairro que já foi arredores Os antigos que não nos decepcionaram mais porque são mito e esplendor. Os seis volumes de Schopenhauer que jamais terminamos de ler. A saudade, não a leitura, da segunda parte do Quixote. O oriente que, na verdade, não existe para o afegão, o persa ou o tártaro. Os mais velhos com quem não conseguiríamos conversar durante um quarto de hora. As mutantes formas da memória, que está feita do esquecido. Os idiomas que mal deciframos. Um ou outro verso latino ou saxão que não é mais do que um hábito. Os amigos que não podem faltar porque já morreram. O ilimitado nome de Shakespeare. A mulher que está a nosso lado e que é tão diversa. O xadrez e a álgebra, que não sei.
Jorge Luiz Borges
Tradução de Cleber Teixeira, Walter Costa e Raúl Antelo
Dá-me a tua mão
Dá-me a tua mão: vou agora te contarComo entrei no inexpressivoQue sempre foi a minha busca cega e secreta. De como entreiNaquilo que existe entre o número um e o número dois, De como vi a linha de mistério e fogo E que é a linha sub-reptícia.Entre duas notas de música existe uma nota, Entre dois fatos existe um fato,Entre dois grãos de areia por mais juntos que estejam Existe um intervalo de espaço, Existe um sentir que é entre o sentir - nos interstícios da matéria primordial Está a linha de mistério e fogo,Que é a respiração do mundo, E a respiração contínua do mundo É aquilo que ouvimos E chamamos de silêncio.
Meu deus, me dê a coragem
Meu deus, me dê a coragemDe viver trezentos e sessenta e cinco dias e noites, Todos vazios de tua presença. Me dê a coragem de considerar esse vazio Como uma plenitude. Faça com que eu seja a tua amante humilde, Entrelaçada a ti em êxtase. Faça com que eu possa falar Com este vazio tremendo E receber como resposta O amor materno que nutre e embala. Faça com que eu tenha a coragem de te amar, Sem odiar as tuas ofensas à minha alma e ao meu corpo. Faça com que a solidão não me destrua. Faça com que minha solidão me sirva de companhia. Faça com que eu tenha a coragem de me enfrentar. Faça com que eu saiba ficar com o nada E mesmo assim me sentir Como Se Estivesse Plena De Tudo. Receba Em Teus Braços O Meu Pecado De Pensar.
Pecado
Quero ter a liberdade de dizer coisas sem nexo como profunda forma de te atingir.Só o errado me atrai, e amo o pecado, a flor do pecado... Eu quero a desarticulação,só assim sou eu no mundo. Só assim me sinto bem... Eu na minha solidão quase vou explodir. Morrer deve ser uma muda explosão interna o corpo não aguenta mais ser corpo... E se morrerfor um prazer, egoísta prazer?
Clarice Lispector.
E de Repente é Noite
Todos estão sós no coração da terra,
atravessados por um raio de sol:
e de repente é noite.
( salvatore Quasimodo )
SONATA PARA ELZA
Em que sonhos me viste
antes de conhecer-me?
Como reconheceste
o meu rosto em teu sonho?
E foste me povoando,
aos poucos, com teu puro
existir, sem percalços,
como pela janela entra
o vento, caem folhas
e o dia desce ou sobe
sobre a epiderme calma
ou alguma porta bate
e zumbe uma cigarra.
Ou a esvelta palmeira
cresceu. O movimento
de teu amor foi como
sentir que estava vivo,
resisti ao exílio
e te amava, menina
dos pássaros. E te amo.
E um cântico trazes
de alegria contigo.
E te chamo, menina
dos figos, porque é doce
e meigo o teu convívio.
E vais à feira, Elza
e sempre figos compras:
maduros, matutinos.
E por seres tranqüila,
serena, mansa e suave,
és menina da brisa,
a mesma que nos abre -,
com cheiro de macieiras,
a luz que vem da tarde.
E escrevo esta sonata
na casa que erguemos
sobre o rochedo, alta
e alva. Deus é onde
sabemos, não sabemos.
Amada, voam pássaros,
em círculo, em teu nome
e sobre os teus cabelos.
Escuros, negros. Brancos,
nossos pressentimentos.
Ou já brincam na selva,
ou, Elza, em ti descansam,
ou juntos emigramos
para as nossas origens.
Que o meu amor te leva
e o vento nos dirige
CARLOS NEJAR